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O que os adultos podem aprender com as crianças

O que há de mais útil nas crianças é que elas não deixam que a imaginação seja limitada pelos aspectos mais irritantes ou triviais da realidade. Elas olham para um simples sofá e veem nele a base de uma engenhosa nave espacial, capaz de viajar rápida e confortavelmente por galáxias vizinhas. Um quintal sem graça pode se tornar o local ideal para um novo tipo de restaurante, oferecendo combinações fascinantes de alimentos ainda não desenvolvidas pelo setor gastronômico comum. Elas sabem observar um irmão ou uma irmã e reconhecer nele(a) um(a) líder nacional corajoso(a), disciplinado(a) e determinado(a), capaz de conduzir o país para fora de suas dificuldades e inventar uma nova forma de fazer política. 

As crianças não veem necessidade de esperar até que todos os detalhes práticos estejam resolvidos antes de começar a imaginar novos projetos e desenvolver propostas originais. Elas entendem a essência do que precisa ser feito e têm entusiasmo em traçar rapidamente os contornos gerais de seus planos. Não carregam o respeito típico dos adultos pelas chamadas objeções sensatas a cada nova ideia, nem a obediência às inúmeras razões pelas quais algo não deveria ser tentado e o status quo deveria permanecer melancolicamente intocado. 

As crianças pequenas tendem a estar certas em sua intuição de que os detalhes práticos geralmente podem ser resolvidos com o tempo — mas que, no início, o que realmente se precisa é de visão. A maioria dos grandes avanços foi obra da imaginação muito antes de se tornar um feito de engenharia, política, arte ou ciência. Eram ideias que precisavam ser visualizadas com uma mente fantasiosa, confiante e destemida — uma mente que não limitasse sua liberdade apontando que algo poderia custar caro demais, que alguns membros da equipe poderiam se incomodar com a inovação ou que existiam regras do governo contra esse tipo de coisa. 

O voo, por exemplo: por um lado, o voo motorizado foi um avanço prático que dependia de um trabalho cuidadoso em torno do formato das asas, dos motores a gasolina e dos trens de pouso. Mas havia, sem dúvida, tanta imaginação no avião quanto engenharia; o avião precisou ser sonhado antes de ser projetado. Grande parte desse trabalho imaginativo foi realizado por pioneiros do pensamento lúdico no século XIX, a grande era dos devaneios tecnológicos, quando grandes “crianças” utópicas imaginaram como seria possível voar entre cidades em máquinas milagrosas, mais pesadas que o ar, e um dia viajar de Paris a Nova York em apenas algumas horas. 

Esses pioneiros da tecnologia também imaginaram o e-mail, os submarinos, os túneis sob o Canal da Mancha, os aspiradores de pó, os telefones celulares e a educação digital. É uma homenagem à grandiosidade de suas ambições o fato de que a realidade ainda precise alcançar suas ideias sobre mochilas a jato e bombeiros alados. 

As crianças não têm apenas lições a nos ensinar sobre imaginar o futuro de forma lúdica. Elas também são habilidosas em criar amigos imaginários. A realidade muitas vezes é muito pobre em nos oferecer o tipo de pessoa de que realmente precisamos para nos sentirmos compreendidos e amparados. Aquilo que desejamos ouvir e o tipo de interação que ansiamos podem não estar disponíveis nas condições limitadas de um lar comum. Mas isso raramente as detém. Elas se apegam, com engenhosidade, a um pedaço de pano de trinta centímetros recheado e com olhos de botão — e decidem que esse é o amigo que sempre desejaram e merecem: alguém que entende suas tristezas, tem palavras de conforto quando estão confusas, quer tomar chá com elas à noite e estará sempre, sempre pronto para um abraço. 

Mais tarde, elas podem descobrir os livros e repetir um gesto parecido. Esses chamados “ratos de biblioteca” aprendem a se sentir conectados a uma pessoa que pode ter morrido em 1420 d.C. ou 300 a.C., e que lhes diz coisas importantes com uma clareza e uma vivacidade que ninguém ao redor consegue igualar. Passam a carregar esse amigo na bolsa para onde quer que vão, sem se importar se as pontas do livro ficam sujas ou as páginas amassadas. Ficam acordadas até tarde com esse “amigo” e podem chorar diante de uma ternura e compreensão que parecem tão distantes do que recebem das pessoas à sua volta. 

Algumas dessas crianças acabam se tornando escritoras e, um dia, confiam a uma página aquilo que é difícil expressar a outros pessoalmente, uma versão adulta do mesmo gesto que talvez tenham feito na infância, quando seu urso gasto escutava pacientemente suas aflições. 

As livrarias, os “brinquedos” dos adultos, tornam-se lugares onde nossas decepções com os outros podem ser mediadas e redimidas e onde amigos que não encontramos na vida podem ser conquistados por meio do jogo adulto que chamamos, com sobriedade, de “literatura”. 

A posição ideal do brincar na vida foi explorada pela primeira vez pelos antigos gregos. Entre todos os seus deuses, dois eram especialmente importantes. O primeiro era Apolo, deus da razão e da sabedoria. Ele se ocupava da paciência, da minúcia, do dever e do pensamento lógico. Presidia os domínios do governo, do comércio e daquilo que hoje chamamos de ciência. 

Mas havia outro deus igualmente importante, uma figura diametralmente oposta, a quem os gregos chamavam de Dionísio. Ele representava a imaginação, a impaciência, o caos, a emoção, o instinto e o jogo. O “dionisíaco” envolvia o sonho, a libertação e o relaxamento das rígidas regras da razão. E, de forma crucial, os gregos acreditavam que nenhuma vida poderia ser completa sem uma combinação desses dois princípios. Tanto Apolo quanto Dionísio tinham seus direitos sobre a existência humana, e cada um deles, levado ao extremo, podia gerar mentes perigosamente desequilibradas. 

Quando as crianças nos levam à beira da loucura com suas brincadeiras (com os gritos, as tolices, os sofás destruídos e as poções pegajosas que as acompanham), devemos lembrar o quanto nós, cansados guardiões de Apolo, continuamos em dívida com os jovens seguidores de Dionísio e com seu chamado constante para dobrar a realidade na direção dos nossos sonhos. 

 

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By The School of Life

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